A Feira em Campo Alegre de Lourdes
O tempo é remoto, lá pelos idos de 60/70…
O lugar é distante, mas o filme das memórias armazenado no baú das recordações sempre volta a rebobinar.
É sexta-feira, véspera da Feira. À tardinha, um grupo de mocinhas da cidade se dirige para a caatinga para colher hastes de marmeleiro, fazer vassouras com os feixes e no sábado cedinho varrer os terreiros.
Nem tão por necessidade porque há outras vassouras, mas é uma diversão, um encontro semanal que bota a conversa em dia.
Cantam os pássaros anunciando que o dia chegou.
Chegou o sábado!
É dia de feira e varre-se os terreiros.
Os copos de alumínio, lustrados com a branca areia fina, bom-bril nosso de cada dia, já reluzem na quartinheira, onde os potes de barro já se encontram cheios.
Feira: a recepção
Meu pai é um anfitrião que vai arranchando os parentes, os aderentes, os conhecidos e afins, que vão chegando das redondezas pra comerciar na feira da cidade.
Chegam em animais que são deixados nos cabrestos amarrados em toda a extensão das cercas, pro oeste e pro sul, e ali permanecem por todo o dia servindo de adorno e adubando o chão.
Na calçada se acomodam aiós e cangalhas e para enfeitar a sala entram os arreios.
Chicotes, estribos e selas são pendurados nos tornos para descansar, enquanto os animais, nas cercas amarrados, descansam do peso e arejam o pêlo.
Um odor almiscarado toma conta da casa, uma mistura de cheiros das selas suadas do lombo dos animais; do homem trabalhador, cujo suor forte e marcante se dissipa no cheiro do sabonete Phebo e do desodorante Mistral, e do perfume das moças faceiras que vêm para a feira.
Minâncora para resguardar a pele dos raios do sol escaldante; Leite de Rosas e talco Tabu para inibir a transpiração; Água de Colônia e Alfazema para perfumar o corpo, e nas madeixas, Lavanda e Óleo Glostora. Para realçar o rosto o pó de arroz, ruge, batom rosa-choque e lápis crayon nas sobrancelhas feitas com Gillette; unhas encarnadas e roupas no capricho. A sombrinha não pode faltar porque o sol é a pino.
A feira é mais que uma feira de mercadorias, é um evento cultural, um lugar para passear, encontrar pessoas e trocar experiências. É um evento comunitário semanal de interesse local e de todos.
É sábado! É dia de feira! É dia de movimento e aglomeração de pessoas da cidade e dos interiores, e de forasteiros, que já chegam na sexta-feira para madrugar. Uns vêm para vender, outros vêm para comprar. Alguns vêm mesmo só para passear.
Feira e fartura
O mercado é logo ali pertinho, no centro, para facilitar a vida do citadino, e reúne no seu entorno os feirantes de mantimentos e de outras mercadorias e quem mais quiser fazer uma boa barganha.
Do Brejo vem o buriti nas suas diversas formas, vem coco, vem rapadura, melado e cana-de-açúcar que se transforma em garapa, manga-espada e manga-rosa, vem o bom fumo de rolo, vassouras de carnaúba, chapéus e esteiras de palha trançada.
Do interior mais próximo vem o feijão, o arroz em casca, vem o mel, o gergelim, o milho, o amendoim, a tapioca fresquinha, a farinha de mandioca, a manteiga de garrafa, o ovo e o requeijão. Vem a farinha de borra, a borra de requeijão, a resina de angico, o tamarindo, o umbu, a macaxeira, a favela, a mucunã e a mamona, em grandes sacas de estopa. Da beira-do-rio, da cidade-mãe, vêm as verduras e o surubim.
O Mercado, murado por armazéns, vendas, bodegas vazadas, com quatro grandes entradas pelos pontos cardeais, abriga em seu interior os açougues, as peixarias, as bancas de comida pronta com seus pratos principais: buchada e espinhaço de bode cozidos no fogão de lenha em panelas de ferro e de barro, cozidos na banha de porco e regados com malagueta curtida no soro do requeijão.
Sabor sem comparação! No seu grande pátio central a céu aberto, abriga as caças e as criações: porcos, carneiros, cabritos, cocás, galinhas, perus, pavões, pebas e tatus.
É sábado, é feira, e eu não sei bem porquê, mas tinha aula.
Os estudantes logo cedo partem pro ginásio e há brejeiros no meio do caminho. No meio do caminho há brejeiros com grandes malões de couro transbordantes de mangas e de buritis.
Um grupo de estudantes afoitos escolhe o caminho mais difícil, passam por dentro da feira, se separam para facilitar a circulação e vão se esgueirando fingindo desviar das malas.
De repente um alvoroço!: alguém desembestou na carreira e o brejeiro azedou! Que rapapé!? Lapas de buriti voam pelos ares, e lá se foi a manga-espada, a manga-rosa docinha, deixando para trás os brejeiros baratinados. Alguém salvou a merenda! Não foi por necessidade, foi mesmo por malandragem, vadiagem de estudante.
Feira e agradecimento
É sábado, é feira, é dia de agradecer!
O pobre que veio do interior, aquele mais atirado, que passou a semana inteira se esgotando na labuta, vendeu toda a produção, e com ar de satisfação resolve se compensar com uns goles de cachaça pra comemorar o dia, pois carece festejar e agradecer pelo dinheiro conquistado com o suor do próprio rosto e em vez de ir para casa vai para a bodega bebemorar com os companheiros. Com a palavra molhada se põe a gargantear. Naquele instante se orgulha de seus feitos e passa a posar de rico, e com desmedida euforia vira o bolso pelo avesso, bate o dinheiro na mesa e paga pinga pra todo mundo.
Mas chegando ao fim do dia com os ânimos alterados e os amigos se estranhando, se envolve em confusão. Acaba de mãos vazias, com a língua atrapalhada e tentando se equilibrar nas pernas que já não guia.
É fim de tarde, acabou a feira, é a xepa que se vai deixando a bagaceira. O pau quebra lá pra cima: é tapa, é soco, é empurrão, é pontapé, é gritaria, é peixeira, é correria, é polícia no encalço.
Meu pai é logo avisado e corre para intervir, e com muita diplomacia salva algum parente ou um conhecido das mãos dos policiais e o livra da delegacia. Leva o arruaceiro pra casa, mamãe lhe mete um café amargo, um bom prato de comida e depois da carraspana meu pai lhe prega o sermão e bota no caminho de casa.
Fim de festa!
Findou o dia!
Autora: Eliete Iva de Sousa, em 14 de agosto de 2020.